Monday, June 18, 2007

atitudes litorais


Em 1984 o José Miranda Justo, professor na universidade de letras (e também pintor) e conecedor quer da estética romantica alemã, quer de Derrida, organizou uma exposição sobre as relações entre o linguistico e o pictórico, assim como uma série de conferências onde o tema seria discutido. Não possuo o catálogo, mas coleccionei os textos das conferências de Àlvaro Lapa, Fernando Belo e Pedro Cabrita Reis. O de Lapa é um texto belíssimo. O de Pedro Cabrita é um texto emblemático a todos os níveis - extenso, fluente, estonteante, etc. É um texto que não se acompanha conceptualmente, porque não é a isso que se destinava - traduz mais que qualquer outro texto o «rumor teórico» da época de uma forma irónica que é assinalada no fim pelo autor:


«Terminariamos recordando com a mesma candura hipócrita com que este texto foi pronunciado, que ele se foi construindo usando apenas como pretexto e território possível aquele outro, não seu congénere – porque nada o é em relação a coisa alguma – que aparece a abrir o catálogo desta exposição. Aleatóriamente, ou simplesmente ao acaso da ironia, ou disfrutando da intencionalidade, se foram encadeando as palavras e as frases inteiras respigadas a esmo. Blague irrisória que reivindica a sua própria destruição, aquele prazer inelutável que são as armadilhas do texto ou se quiserem a impossibilidade de ele significar algo mais que não seja precisamente aquilo que nele se não encontra escrito, relegando também para um lugar não oceânico a compreensão desta avareza significativa que são as palavras.»


«Nem sequer foi o lugar dum absurdo porque nem se propunha a uma dimensão quase trágica, e muito à superfície pode ficar dito que apenas se pretendeu rever, provocatóriamente, na impossibilidade que qualquer texto controi face a qualquer objecto pictórico. Restava ao seu autor o alibi quase autofágico de que tudo isto não passasse de uma justificação da sua própria pintura. Impossível, posto que está sob o olhar atento de toda a pintura desde sempre.»


Cabrita íniciou a intervenção segundo o lema de que «o que se pode dizer nunca se pode ver» - a sua posição é quase sempre clara no sentido de que nem as imagens podem dizer as palavras nem o oposto - opção anti-platónica e anti-conceptualista que tem rigorosamente mantido.


Na mesma mesa Lapa, que falava em incursões no insignificante temporário, habituou-nos a uma atitute, também «litoral», mais próxima da minha, o alegorismo (a mão fugiu-me e escrevi «alegrismo», o que não é muito diferente), isto é, as linguagens coexistem e contaminam-se, e as (suas)obras de arte são menos o que se vê e o que se pode ou não dizer, e mais o clima, a interface, entre o vêr e o dizer - é um caso particular que pode «recuperar» muitos aspectos da arte conceptual, e que num sentido embora distinto os post-modernistas americanos, partindo do livro de Benjamin sobre o drama barroco, utilizaram como dispositivo assumido. Não é o «alegorismo» antigo, mas é um alegorismo que recupera a noção duchampiana de aparência alegórica. O olhar não se consegue livrar nem do que se diz, nem das leituras.


A posição de Cabrita é exemplar, e é sobre ela que «inconscientemente» têm glosado os seus apresentadores - é a visualidade descondicionada de estados excepcionais, anterior às palavras e aos conceitos.


Almada Negreiros escreveu que «dos grunhidos pânicos ao nome das coisas o homem deixou escapar algo de essêncial» - acho que esta frase, que fala sobre o não-dito, o indizível ou algo parecido faz parte desse canone do «apofático» de que Derrida um pouco mais tarde veio a sistematizar.

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